No apartamento de janelas enormes vivia
o gato Lucrécio, o cão Balbino e João. João estava de frente à janela enquanto
esperava o sono vir, observando as poucas pessoas passando à distância como
fantasmas. Do lado de dentro as quinquilharias se acumulavam para dar coerência
à vida de João. Pelo chão havia pêlo de animais, moedas, poeira, papéis
amassados e símbolos de desistência. João andava pelo apartamento olhando pro
lado de fora e percebendo que seu reflexo no vidro também parecia um fantasma.
Terminando o último cigarro, decidiu que ia dormir.
Saltou e chutou os entulhos no chão
até encontrar a própria cama. Olhou em volta antes de dormir e percebeu os
olhos brilhantes de Lucrécio escondidos no meio da bagunça e o rabo de Balbino
sacudindo devagar. Com um assovio, os dois subiram na cama e deitaram com João,
como sempre faziam. Balbino tomou o lado da cama que há muito tempo fora
habitado por mulheres e Lucrécio deitou nas costas de João, que por sua vez dormiu
de barriga pra baixo babando no colchão.
Ao acordar, João estava sozinho.
Embriagado de sono ele se esgueirou pela desordem até encontrar a cozinha. Lá
ele se serviu de coca-cola sem gás e pizza gelada que tinha restado da outra
noite. No lugar do café fumou dois cigarros, deixando que o gosto químico dos
aditivos e tabaco lhe servisse de ritual para começar o dia.
Outro que também começava o ritual
matutino era o vizinho de João, um Paquistanês metido a Nostradamus que cobrava
por parcas previsões. “Recomeço está no seu futuro”. Essa foi a
resposta que João obteve do vizinho quando juntou as moedas de seu apartamento
e pediu por uma previsão. João decidiu que a resposta podia significar qualquer
coisa, porque seus dias eram iguais. Desapontado com a balela, João passou a desprezar o vizinho e
tomá-lo por um charlatão.
Na verdade, tudo aquilo que não
estivesse enclausurado pelas paredes de metal, plástico, madeira e vidro de seu
apartamento lhe parecia bem desinteressante. Pessoas que vagam - fantasmas.
Pessoas que pagam - idiotas. Pessoas que cobram - charlatãs. Dentro do
apartamento tudo era desordem, mas pelo menos João não dependia dos favores
embolsados e mentirinhas do dia-a-dia. Irritado com a música do paquistanês
João ligou o Jazz, acendeu o terceiro cigarro acreditando ser o segundo, e
sentou no sofá onde seus bichos estavam.
Olhando para o teto João segurava o cigarro com
a mão direita e com a esquerda acariciava hora Lucrécio, hora Balbino. Quando a
chama quase queimou seus dedos, João desviou o olhar do teto para o cinzeiro,
onde ele depositou a guimba, e depois para os bichos. Eles estavam muito
quietos.
Um assovio, nenhuma resposta. Dois
assovios, nenhuma resposta. Antes de dar o terceiro, João pegou Lucrécio. Ele
estava leve, macio, bem diferente do gato gordo e preguiçoso que dormia sobre suas
costas. Assustado, João soltou o bicho de pelúcia, que caiu no chão sobre as
quatro patas, mas sem se mover. Em todos os detalhes o bicho era igual Lucrécio,
exceto pelo essencial.
Não era um gato de verdade, mesmo
tento todas as manchas rajadas sobre o pêlo branco e os pontinhos amarelados
nos olhos esverdeados. O mesmo havia acontecido com o cão Balbino.
Confuso, o quarto cigarro surgiu como
milagre entre os dedos de João e logo ele estava vasculhando as coisas
acumuladas no apartamento enquanto espalhava cinzas e fumaça.
Um grito.
- Balbino!
Outro grito.
- Lucrécio!
E nenhuma resposta, nenhum miado,
nenhum latido, nada. Nem mesmo quando colocou ração no potinho deles.
Derrotado, João se sentou novamente no
sofá e olhou para os quatro olhos de bolinha de gude daquelas imitações em
pelúcia de seus únicos companheiros. João sabia que não sairia de casa a não
ser que fosse removido de lá à força, mas ver seus amigos transformados em
bonecos o desesperou. Enquanto andava de um lado para o outro, fitando a janela
que se estendia quase até o teto, João ouviu.
- Mãe, eu quero o fumante.
E então barulhos metálicos e músicas
estridentes invadiram o apartamento. Algo se movia como um caçador, e ainda de
cueca e confuso João olhou para o teto, o mesmo teto que fitou enquanto estava
fumando. Garras metálicas se estenderam e buscaram o corpo de João. Elas se
fecharam sem delicadeza, prendendo também Lucrécio. Balbino também ficou
pendurado por alguns segundos pelo rabo, mas logo escapuliu e voltou lá pra
baixo, na confusão do apartamento.
A terrível garra metálica apertava o homem
e seu gato, que confusos acabaram por se renderem à situação. No ápice da
abdução a garra metálica se abriu e despejou o homem e o gato num alçapão
escuro.
João ouviu gritos de vitória e também
o sotaque paquistanês de seu vizinho informando mentiras. João foi retirado do
alçapão por uma mão gigantesca que era, entretanto, mais fofinha do que a garra
que o arrancou de seu apartamento. Enquanto era carregado João olhou para o
lado e viu a porta de seu vizinho. Nela um letreiro luminoso indicava “Ashan, o
vidente. Conheça o seu destino. 10 centavos a ficha”
A criatura titânica levou João à
altura de seu rosto e sorriu.
- Gostei desse, mãe.
- Mas eu não – respondeu uma voz de
autoridade. – Quem pensou em colocar um boneco com cigarro lá dentro? Isso tá
errado. Toma, fica com o gatinho.
O filho protestou, mas a mãe pegou João por um dos braços e puxou; o filho puxou pelo outro braço. João sentiu seus músculos rasgarem e pensou
ter ouvido o estalo de rompimento de cada um de seus tendões. O braço esquerdo
havia sido arrancado, e de suas artérias jorravam filetes de espuma branca.
- Viu só? – bradou a mãe – estragou.
Agora é que vai pro lixo mesmo.
E assim João foi arremessado no topo
de uma pilha de lixo num parque de diversões. Ele não tinha um dos braços, mas
ainda podia ouvir. Ouvia seu vizinho rindo e falando com sotaque do oriente
médio:
- Hoohahoho! Eu te falei, você tá na
lixeira de material reciclado... Renovação está no seu futuro! Hahahohohoha!
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