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Aterro de Vidas

  Em Agosto de 2014 o fotógrafo e amigo Andrey Botelho me convidou para elaborar um texto para acompanhar um projeto fotográfico sobre famílias vivendo no aterro sanitário de Montes Claros - MG. Com o tempo as perspectivas e palavras mudaram, mas a realidade permaneceu revoltante e triste. Publicado originalmente no site de Andrey Botelho (onde outras fotos podem ser conferidas) republico agora o texto Aterro de Vidas.

  Pela manhã, Raíssa brinca com os cachorros e as galinhas. Entusiasmada, mostra o novo cachorrinho que não parava de latir perto do fogão à lenha. Dona Dada, mãe de Raíssa, escuta com atenção as instruções para o remédio comprado na farmácia, e depois me explica sobre as plantas no meio do lixão: “Saião é remédio pro ouvido”. As vizinhas conversam, riem e trabalham; sujas até os cotovelos, sem parecer perceberem o cheiro que dá dor de cabeça.
  
  Há mais de vinte anos, Dona Dada é uma das pessoas que mora ao lado Aterro Sanitário de Montes Claros, onde trabalha catando garrafas pet para reciclagem. O trabalho rende R150,00 por mês, e a vida passa invisível para a população da cidade, vivendo de muito pouco, tirando valor no que os outros jogaram fora.

  Embora a pobreza seja algo visível para praticamente todos os Brasileiros, às vezes somos sobressaltados com os detalhes. Não imaginamos que depois dos muros de nossas casas a miséria está bem mais perto do que parece. A cinco ou seis quilômetros do centro da cidade, as mulheres perguntam quando receberão a visita do médico. Precisam ligar as trompas, dizem. Não podem trazer mais criança pro mundo pra viver desta forma. Elas querem sair de lá, arranjar uma vida mais digna, um trabalho melhor.

  Dona Dada não pensa assim.

  O sossego que ela diz ter encontrado ali, com sua jabuticabeira, seus bichos que vivem soltos e o radinho a pilha, não valem o transtorno de outra vida. Por trás da lona que é o teto e as paredes da casa dela, Raíssa observa a lente da máquina. Faz pose, dá um sorriso largo, mostra os brinquedos, mas não vê refletido na lente o futuro que talvez repita a história da mãe. Para ela é parte do cotidiano tomar banho de caneco e refrigerar os alimentos em um tonel cheio de água, mas a cidade está crescendo na direção do lixão, e talvez aquele terreno e esse tipo de vida sejam tomados.

  No meio do lixo e da escassez a pergunta paira inaudível: Esta paz que Dona Dada diz ter vivendo ali, sem luz, sem água encanada, sendo cidadã apenas na carteira de identidade para receber a cesta básica... É digna? Há uma alternativa real para realocar essas vidas em miséria, mesmo frente a uma recusa?

  Há, no Brasil, aproximadamente 800 mil catadores de lixo. A vida de cada um destes se perde nas estatísticas e é ignorada pelo poder público, mas a sensibilidade dos indivíduos ilustra o tratamento que nós, como sociedade, damos a estas pessoas. A estatística é fria, não chora, não carece de um prato e não tem nome. Nas raras vezes que estas pessoas ganham voz, a realidade escancarada choca muito mais. Por trás da crueldade do abandono pelo Estado, algumas destas pessoas, como Dona Dada, evidenciam a nossa incapacidade de distinguir a necessidade do dinheiro do consumo desenfreado – esta religião da pós-modernidade.

  São vidas aterradas pelo acaso ou pelo descaso?

  O cheiro do lixo gruda na pele. A doença se alastra. A fome avança mais rápido do que o governo em reconhecer a crise de muitos. Raíssa cresce, mal-nutrida e sem escola. Dona Dada se recusa a mudar. E na lei a dignidade do indivíduo é defendida em papéis que depois serão catados no lixão pra alimentar o fogão.



Aterro de Vidas - Texto por Pedro Ribeiro Nogueira 
Fotos por Andrey Botelho, presente em andreybotelho.com.br

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