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Mostrando postagens de 2017

João-de-Barro

João-de-Barro se orgulhou e depois da própria criação, olhou no espelho. No reflexo viu as paredes, os quadros ainda não pendurados,  os painéis de madeira e os tijolos. Embora fosse o João-de-Barro, era só um nome, pois nada daquilo foi ele quem criou. Não, na verdade pagou com salário recolhido como um Cuco que rouba de outros filhotes a mesada parcelada em jogos, lanches e drogas. Mesmo assim no reflexo João-de-Barro se orgulhou, pois tinha boa aparência Um reflexo marrom e azul-escuro de sabedoria, com alguns títulos que na ficção seriam chamados “Honrarias” porque foram todos conseguidos com alguma medida de fraude. Nada criminoso. Apenas preguiçoso. E a beleza? Caída, flácida, inchada, com cicatrizes.  Freqüentemente fedorento. Mas claro que João era um bom operário  suas ferramentas e seu barro eram abstratos... Palavras, a serem moldadas  ou separadas em fragmentos. João era um mentiroso.

Fingindo Melancolia

Acostuma-te com a cova e a merda que te esperam, são suas!  Velhas amigas estarão reunidas em seu funeral e seus nomes são bem conhecidos: Ingratidão, com a boca enrugada e amarga Solidão, escondida em um rosto vago e a dona do show, Rejeição. Por mais que tragas flores são só para a Ironia,  a mais familiar das velhas amigas. No lugar do túmulo joga um escarro Porque, claro O fim é miserável, como a criança abusada  que foi a vida.

Pé na Estrada

Nem a verdade pode agarrar certas certezas. ou a estrada percorrer toda a viagem. A margem não delimita todo o rio,  nem nascente,  poente,  e paisagem. Nem sempre é gente quem viaja E nem o que queima é sempre quente. Nem sempre as passadas têm um destino. Às vezes é só o gasto solado do sapato arrastando o tempo enquanto vai indo

Mantra II

A minha magia é a volta das mãos que brilham como as palavras de um santo cristão  que desceu ao corpo do meu avô de criação. Meu poder é a palavra  desde que seja controlada pelas margens reais  ou pelas que cabem nos pulmões. Minha espada se chama Perdão, e quando minha voz for de um leão enjaulado  que eu me lembre: as barras são feitas de indecisão. Eu corto com Perdão as quatro direções e entôo o mantra. Minha magia é a aceitação.

Cat on the run

The cat is a sage in silence, she is a dune. She shines a light on my direction Because she is the horizon  lit by the moon. Though she thinks she is finished,  she’s really brand new. The cat lies on all directions,  and pounces and plays and then strays away. She is mine, she is the cold sun She’s the sand that moves at night and the cat that falls on its feet,  and runs. She escapes with the fleet of her thoughts because she is the mist so she's never lost.

Kirtimukha

O tempo acaba com o tempo- Sem início, sem fim, Que nome há pra isso? A vida devora a vida, E pelo seu fim Reinicia. A face da glória se devora E o pôr-do-sol a aurora imita.

Tempos de Guerra

O dia passa com bravatas E o seguinte com ruínas. Lesmas ensaboam as praças e vespas plotam um motim. As formigas exibem suas armas  contra a super potência dos cupins. Os cães protegem as casas e as cigarras choram pelo fim. O tempo, como um tigre, boceja e com um salto sai de sua tocaia. Ele vem com passadas pesadas e se deita na parte mais verde do jardim. O dia passa com bravatas E o seguinte com ruínas. Lesmas ensaboam as praças e vespas plotam um motim. O tigre dorme.

Meditações em Azul Escuro

Meditando sobre me ver como um personagem,  olhando à distância,  acabei arrumando o armário;  amarrei os sapatos.  Me cerquei dessa sonolência adequada  mas deslocada no tempo.  Me vi perdido e achado na linguagem,  na arte,  no movimento,  mesmo estando parado, no momento.  As soluções estão nas pontas dos dedos; e desenhando ou escrevendo eu vejo a infância à distância, mas não vejo simetria.

Desintoxicar

Vou cansar meu corpo para suar a toxina e vou ferir meus dedos - ao invés de arrancar os cabelos - desenhando e escrevendo. Vou me purificar desse veneno me encharcando de terebintina e vou tacar fogo nos meus membros e vomitar conselhos obscenos. Vou arrancar as camadas de pele e osso e desintegrar o reboco do coração. Não vou manter intacto o que o passado cobriu sem pedir licença. Vou me desfazer até que só reste a saúde não controlada por remédios e favores. Quero me limpar retrocedendo até o segundo incandescente antes do meu nascimento

Aterro de Vidas

  Em Agosto de 2014 o fotógrafo e amigo Andrey Botelho me convidou para elaborar um texto para acompanhar um projeto fotográfico sobre famílias vivendo no aterro sanitário de Montes Claros - MG.  Com o tempo as perspectivas e palavras mudaram, mas a realidade permaneceu revoltante e triste. Publicado originalmente no site de   Andrey Botelho   (onde outras fotos podem ser conferidas) republico agora o texto Aterro de Vidas.    Pela manhã, Raíssa brinca com os cachorros e as galinhas. Entusiasmada, mostra o novo cachorrinho que não parava de latir perto do fogão à lenha. Dona Dada, mãe de Raíssa, escuta com atenção as instruções para o remédio comprado na farmácia, e depois me explica sobre as plantas no meio do lixão: “Saião é remédio pro ouvido”. As vizinhas conversam, riem e trabalham; sujas até os cotovelos, sem parecer perceberem o cheiro que dá dor de cabeça.      Há mais de vinte anos, Dona Dada é uma das pessoas que mora ao lado Aterro Sanitário de Montes Claros, onde

Saímos para Jantar

Saimos pra jantar Eu, Satanás e Belzebu. Belzebu, esfomeado, comeu filé de mosquito flambado Satanás, mais elegante, comeu cadáver flamejante. Eu, indeciso, pedi a Cthulhu uma sugestão.  Mas de Rl'yeh num rompante inesperado ouvi um grito de frustração:  "O que acha que eu sou, Tio Lu? cozinheiro do diabo?  O menu era um papiro da tumba de Azatoth cuja linguagem cabalística era revelada  com o bater de asas de um corvo (ou uma gralha) que insistentemente explicava:  o couvert artístico, pra que os clientes tenham paz Estes poetas do obscuro cobrarão...  Nunca mais! E no muro de pedra estava escrito Que com o alinhamento dos planetas,  ou toda terça-feira “Abandonarás toda esperança vós que entrais”

The Cat

   The cat arches its back and turns.    She slides under blankets and reaches a white paw.    The cat purrs my name and comes    to climb me and hold me to the floor.    The ginger cat sings my sins and repeats    scratching at every open sore.    The cat falls asleep with the scent of its species    to visit Egypt’s dream-distant shores.    The cat purrs my name and I come    but she finds her way through the door.

Susan das Cobras

    Susan das cobras era mulher e menina. Nunca meio termo. Era proibido, em sua cabeça, se comprometer no meio. Nunca mais ou menos para ela, que às vezes parecia ter oito anos de idade, noutras vezes era adulta e mulher. Seu nome era Susan, como o sussurro de uma língua bífida e obscura. Era a menina-mulher das cobras, pois as colecionava.     Entretanto, era ela o bichinho de estimação - servia a um altar das víboras e rastejava por sua aprovação. Era uma serpentinha, um monstro esguio. Todo dia as levava para tomar sol, para passear, se alimentar. Toda noite se injetava com uma agulha mais aguçada que qualquer seringa. O antídoto e veneno eram apropriados, pois rastejaria pra qualquer das direções.      Certa vez Susan se deitou sobre o ventre imitando o rastejar e bifurcando a língua enquanto tateava sua vida que se tornava duas também. Susan foi perdendo os braços e as pernas enquanto arrastava na música do chocalho numa dança sinuosa. Quando seu corpo se cobriu de escamas

Condutor

Esta poesia foi inspirada na Divina Comédia À mão agourenta cuja torpeza faz do meu fôlego um sobressalto da manada, que entre a sístole e a diástole, finca-me profundo um espinho certeiro, a ela entrego minha alma. Entrego minhas lembranças tecidas em um pano roto,  minha leveza de vida em um sopro,  entrego-me inteiro, com duas moedas ao barqueiro. Age ligeiro, condutor do peso moral de um morto, e me leva ao julgamento -  de ser fincado nas mandíbulas da ave de rapina  em um tempo que cada segundo atropela  o outro em um recomeço, ou me leva à sentença que afasta de mim os abutres finais e me dá a alforria para um último vôo, como se fosse meu nome Orfeu, Fausto, Virgílio, ou Prometeu.

Mantra I

Você sabe mas por quê você não sente esse farejar essa baforada quente do lobo que está no seu calcanhar? Seu nome é razão é fraqueza é propósito e o nome é a presa quem dá. Não vá se lembrar no penúltimo momento que sua ética não foi a da compreensão. Não vá computar menos que sete vezes setenta vez sete porquê depois não há reparação.

Chagas (ou Carta de Amor a Kafka)

 A casca gelatinosa começou a se romper com as inevitáveis luzes. O que me dividia do mundo era fino e fértil, e quando eu rompi o ovo senti o vento cobrir meus anéis. Arrastei o corpanzil pelo chão enquanto comia, e senti que eu estava mudando. À minha volta vários voavam, mas eu ainda estava presa ao chão de carne e sangue. Eu precisava crescer, precisava ganhar asas, ganhar vontade. Sem esses poderes, eu ainda era só uma larva na carne, e a carne era a comida.   Entre os arrastares, eu aprendi sobre a vida inteira - A vida é o alimento.  Esperar era quase como dormir. Sem esperar para acordar, pois tudo o que eu conhecia desde sempre estava ali. Eu cresci gorda, como uma larva gorda, como um bebê gordo. Como se espera que cresça quem acabou de nascer. Mas eu já estava mudando.  Quando senti os olhos secos, os molhei com a língua e uma pata cavernosa. Tudo que eu via agora passava pelas mil lentes dos meus olhos. As minhas asas como rotores sônicos me impulsionavam para t

Tributo

Paga um tributo ao trovão distante E no fogo acha o alento para a noite. Na toccata e fuga faço uma tocaia,  e me escondo em um acorde fugidio. A tempestade mesclou a noite com o dia e prolongou suas gotas ao redor do fogo através da melodia.  Paga um tributo ao trovão distante E no fogo acha o alento como se a noite não fosse fria.

Estandarte e porta-voz

Um estandarte para o ódio e a ordem, vestido com uniforme, sufocando o pescoço e o peito, com o brilho polido das botas e no olho gelado do aço. A ordem é em código: com propaganda o pecado vira atração, e a fúria um grito uníssono da maioria, descendo como fogo do céu. Um estandarte para o ócio e explosões que varrem as cores desses largos espaços fechados, restando apenas cinzas de um passado incinerado. A sentença, a prece, o slogan, o mandato, o sermão, o planejamento, o toque de recolher,  um homem e uma mulher... Estandartes da cólera e do pecado – vermelhos. Eles passam acelerando o tempo que poderia terminar com esperança, mas que morreu sufocado.   Hierarquia: Um sacerdócio de pontos finais.