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Coadjuvantes


Juliano passa pelo caixa e paga pelas balas e pelo Dramin. Daqui eu não consigo ver o rosto dele, nem o da moça atrás da registradora. O ônibus tá tremendo e não dá pra ouvir as vozes deles também. Esfrego meus olhos e arrasto o corpo na poltrona que cheira a cigarro. Estou me sentindo amarrotado e fecho meus olhos. Estou empacotado pra outra cidade e só sei que dormi por que a saliva que escorreu pelo meu queixo deixou minha barba gelada, no cantinho da boca. Nem vi meu irmão se levantar e descer na parada. Nem o vi voltar e se sentar na poltrona ao meu lado.
Eu odeio viajar de ônibus.
Ainda mais quando é pra esse tipo de ocasião, um enterro. O ônibus balança e me sinto mais acordado, na direção de uma despedida. Foi o Juliano que me falou: “Arruma uma mala que vamos ter que viajar. A prima morreu.”
Ha onze horas ele falou isso e agora está calmo do meu lado, ouvindo algum reggae nos fones de ouvido e batucando nas coxas. Não é como se eu me importasse, também. Sei lá. Eu gostava da prima, sei que meu irmão também; mas quando olho pra ele acompanhando o ritmo da música e sorrindo de leve, sei que ele não tá pensando nela.
Nós nunca fomos próximos, mas quando você pára pra pensar, foi por causa dela que tivemos que nos mudar e passar uma temporada inteira enlatados em estradas, suando a bunda em rodoviárias e sonhando estar acordados. Ela foi o motivo. Eu quase ouço risadas enlatadas, e embora não guarde rancor, sinto cada fibra da cadeira incomodando minha coluna. É por causa dela que odeio viajar de ônibus.
Mas não há mágoa. Todo mundo entendeu quando meus pais a acolheram, por que ela não tinha pra onde ir. Ela nunca foi como Juliano e Christian; dois rapazes feitos, ajuizados e com a vida no lugar. Não tínhamos problemas como ela, mas também não tínhamos dinheiro, e a vida na estrada não é nada barata. Entretanto, mamãe nos educou bem. Nunca paramos de ajudar uns aos outros por causa de dinheiro.
“Família em primeiro lugar” – dizia minha mãe.
Conheci a prima com treze anos, quando ela começou a fazer visitas regulares. Ela vinha da roça pra passar um tempo na metrópole, pra conhecer a cidade. Com o tempo as visitas foram ficando mais freqüentes e o período como hóspede mais longo. Na última vez que nos visitou, eu e meu irmão teríamos que viajar. Não bastava mais dividir o quarto, a prima precisava de privacidade.
Juliano e eu nos tornamos próximos, mas isso não quer dizer eu adore a presença dele. Na verdade, esta é uma conclusão muito sem sentido quando você pára pra pensar. Não somos estranhos um pro outro, mas quanto à sensação de considerá-lo diferente de mim, o ditado da minha mãe também é verdade: “Família em primeiro lugar”.
Não tínhamos nada em comum, ele e eu. Pra começo de conversa, nunca precisei de dramin. Sempre bastou o embalo com dor de cabeça no ônibus pras madrugadas passarem em recortes de tempo. Você pisca e tchum! Está a cem quilômetros de Monte Feliz. Pisca de novo e acorda no aeroporto de um livro que está lendo. Pisca uma terceira vez e tchum! Você acorda com seu irmão ouvindo reggae. Eu pisco mais uma vez e estou a cem quilômetros de Monte Feliz ou talvez seja Santo Antônio do Lugarejo. Meu irmão está resignado com sua música, e eu não tenho trilha sonora. Só os barulhos da madrugada pra além do asfalto.
Nunca fomos próximos, mas quando ela pediu ajuda, nós vazamos. Você tem que entender; essa era a única forma de sermos úteis. “Arruma uma mala”, disse o Juliano quatorze meses atrás, “vamos ter que viajar”. Foi a última visita que ela nos fez, nos obrigando a embalar o hiato das férias com não ter onde morar. Fizemos da estrada nossa nova opção de alojamento. Passamos a cruzar as cidades, navegando o mapa como uma esferográfica sobre o papel, suando as bundas nas rodoviárias e estalando a coluna no desconforto.
Um dia sua prima chega molhada de chuva na sua casa e no dia seguinte você acorda na segunda parada de ônibus. Isso foi ha catorze meses, e desde então todas as madrugadas foram iguais, sem abrir o olho pra saber as horas ou o dia, mas confiando na decisão do motorista. Do meu lado meu irmão ainda ouve reggae, mas já está quase dormindo. Todos no ônibus dormem ou fingem morte até a próxima parada, mas eu já não consigo decifrar o sono da vigília. Apenas observo o corredor de metal e as pessoas enxovalhadas.
Se eu prestar bastante atenção, quase posso ouvir seus pensamentos.
Na verdade não, mas acredito que observando as pessoas você começa a ter insights de quem elas são. Alguns passageiros até exigem atenção, como se uma parte dentro delas gritasse “vejam, eu sou assim. Prazer em conhecê-los, amigos de um ou dois dias”. Estes são os que falam alto no telefone; ou que riem sem vergonha nenhuma, quando conversam às três da manhã com o parceiro de viagem. Essas pessoas exigem que sua presença seja notada e sentida, mas o fazem sem se dar conta. Algumas presenças cheiram a vômito, outras a remédio, outras a um perfume muito doce. Rouge Passion novo produto da linha Jequiti. Quase ouço a música do Merchan.
Do outro lado do corredor vejo uma garota dormindo. Ela está esticada em duas cadeiras e coberta com duas mantas. Ela tem um daqueles travesseiros de pescoço, no formato da letra C. Apesar do conforto todo, ela veste calça jeans. Amadora. Não percebe que duas mantas é um excesso pro ônibus, e que o jeans só serve pra apertar a cintura durante a viagem. Você nem precisa ser gordo, por que o embalo do ônibus faz o corpo escorrer pela cadeira, e o cós da calça ser puxado pra trás. A cintura da calça sobe na bunda e aperta onde não devia. Ao menos ela tá esticada em duas cadeiras, mas mesmo assim deveria ter optado pelo moletom. Apesar do travesseiro e das mantinhas, dá pra ver no cenho franzido dela um desconforto.
Normal, minha filha. É assim mesmo.
Os encostos das cadeiras dela estão abaixados em quarenta e cinco graus. Atrás, um senhor de São Tomé da Várzea está sentado ereto, de olhos abertos e de chapéu. Ele está nesta postura desde que saímos e vai continuar assim, pois não está acostumado com viagens. Ele se senta como se estivesse numa lotação urbana numa viagem de 30 minutos. Ele nem encostou a cadeira pra trás, porque talvez nem saiba onde é a alavanquinha pra descer o encosto. A dó só não é maior porque ele não parece incomodado. Está viajando, ora bolas. Não está dormindo em casa, então não precisa estar confortável. Além do mais – deve pensar o velho - é bom ter alguém acordado caso algum acidente aconteça.
Na minha lista de coisas que odeio, uma das primeiras são os passageiros que reclamam de lugares marcados. Imagino que muitas dessas pessoas estejam acostumadas com a tradição da terceira série de levar muito a sério o mapeamento da sala de aula, e por isso transportam o costume pro ônibus de viagem. Acredito que só uma parcela dos seres humanos pode ser tão mesquinha, ao ponto de sacudir aquele papelzinho com o número da poltrona para o passageiro que já estava acomodado e dizer “Sai daí que esse é meu lugarzinho favorito. Foi marcado pela companhia de ônibus, olha aqui, tenho até esse ‘documento’ pra provar”. Eles devem ser ótimos advogados. Devem ter sido monitores na época de escola, com estrelinha dourada, ponto extra e tudo. São excelentes em reclamar de regras inúteis não-observadas. Odeio a todos.
Atrás de mim um irmão e uma irmã disputam salgadinhos de um saco muito barulhento. Não é como o som constante e hipnótico do motor do ônibus. Esses dois são daqueles que precisam que todos saibam que eles estão definitivamente ali, comendo seus salgadinhos sim, ocupando seus espaços e sendo o que são. Não duvido que um deles acorde no meio da madrugada pra conversar no telefone, ou que reclame com o motorista do ar condicionado. “Esse calor aqui atrás tá ruim pra todo mundo” ele ou ela vai dizer.
“pra todo mundo”.  
Não sei se são amadores, mas no mínimo não são inteligentes. O melhor da estrada é ser um fantasma ou um coadjuvante. Eles querem o centro das atenções, mas não sabem que não cabe a eles decidir isso. É gasto de energia à toa, a viagem é mais prazerosa em invisibilidade.
À minha frente uma senhora lê um livro. Logo mais irá dormir. Não consigo ler no ônibus, fico enjoado. Não sei se leria, mas queria ter um livro cumprindo pena comigo. O castigo seria nunca ser terminado, mas lido e relido até a parte favorita e depois abandonado pra continuar infinito como a estrada. Nas minhas fantasias eu escolho Demian, do Hermann Hesse. Ele nem é comprido, eu poderia terminar, mas gosto da mística por trás desse cara. Demian. Hermann Hesse. Eu pareceria culto. A moça passa as páginas, absorta numa história que não é a sua, como uma figurante. Logo ela fecha o livro pra descansar, e então dou uma espiada entre as poltronas pra ver o que ela estava lendo. O título é Primeiros Passos da Pedagogia Infantil. Pela qualidade da capa, achei que era de James Joyce ou Gabriel García Marques. Minto pra mim mesmo que, caso tivesse um livro com a capa tão bonita, sairia do ônibus mais inteligente. Na verdade tudo que tenho perto de mim é lixo acumulado do dia anterior.
A luz da lua que entra pela janela do ônibus é intermitente como os frames de um filme. Mais uma vez olho para Juliano. Ele é mecânico e tem a barba mal-feita. Mas entre um desses frames e outro, o vejo com o rosto liso, bem barbeado e com cheiro de loção. Sei do que estou falando por que sou barbeiro e nunca tinha visto o rosto de Juliano tão suave. Ele também nunca usou os cabelos tão bem penteados como agora.
Minha coluna estala no embalo da estrada e sou retirado do meu devaneio. É como se naquele segundo o ônibus tivesse passado em um buraco, e com o choque as minhas córneas tivessem se partido. Por isso vi meu irmão com outro rosto. Agora ele já está virado pro outro lado dormindo, o que faz com que a acrobacia de olhar pro rosto dele sem acordá-lo, seja uma tarefa quase impossível.
Viro para o lado, puxo a cortininha e durmo. Dormirei até que o sol aqueça a janela ou o motorista decida a hora de parar pra mijar. Durante a noite acordei várias vezes para verificar o rosto do meu irmão, mas a incredulidade foi maior. Deve ter sido impressão. Não podia ser um impostor vestindo as roupas dele. Ninguém seria tão bom em imitar seus gestos. Isso era bobagem, estou muito cansado e imaginei coisas. Então, ao invés de virar para o lado e encarar o rosto de Juliano, viro pro outro, puxo a cortininha e tento dormir. Sonhei o sonho da noite anterior.
Quando finalmente acordo, ele está me sacudindo e falando o nome da prima. Dizendo que temos que nos apressar; que o enterro é daqui duas horas. Eu ainda me sinto amarrotado, zonzo da viagem. Os passageiros se levantam em monocórdio zumbido, até que um deles interrompe com um “alô? Oi, cheguei sim” e “A viagem foi ótima”. Na verdade foi uma merda. Olho pro lado, e não sei quem é este me sacudindo, dizendo que tenho que acordar e não sei o que. Eu ainda estou de moletom, cacete. Como posso ir prum enterro daqui a duas horas? Onde está o diretor de figurino?
Um monte de passageiros se levanta e embola no corredor de metal do ônibus. A passagem estreita é tomada por todo tipo de gente: Há mulheres que puxam os filhos pelos braços, ansiosas por encontrar seus maridos ou namorados. Os jovens ligam o Artic Monkeys nos fones de ouvido assim que acordam, e colocam a expressão blasé na cara. Eles não se importam com nada e com ninguém; nem com seus pais e mães que estão do lado de fora, acenando pra eles com todo amor que conseguiram reunir por causa da saudade.
Todos os passageiros se acotovelam como amadores ao sair, enquanto os vizinhos de poltrona pegam as bagagens de mão, pacotes de biscoito e garrafinhas d’água. Eu espero aproveitando mais uns minutinhos do sono. Quando o ônibus esvazia, eu me levanto sentindo cada vértebra da coluna gemendo sobre a outra. Aquela pessoa vestindo as roupas do meu irmão já saiu do ônibus e foi pegar as bagagens. Saio metido entre os últimos passageiros e vou até Juliano.
Ele está irritantemente à minha frente fazendo com que eu ande mais depressa, por que está procurando por um táxi. Quando encontra, eu nem penso. Pego minha mala e a coloco dentro do carro e em seguida me jogo no banco de trás. De onde estou, consigo ver pelo retrovisor que Juliano e o taxista se abraçam, mas não consigo ver seus rostos. Olho pra trás, e percebo que o taxista é nosso tio Machado.
É claro que nosso tio nos buscaria na rodoviária pra que não tivéssemos que gastar dinheiro. É claro que não me lembrei. Então, ao invés de pedir desculpas pela falta de educação, viro para o lado e finjo estar dormindo.
Não estou com o figurino adequado e nem vou ter tempo de trocar de roupa. Meio por torpor, meio por causa do sol que embota meus sentidos, tento evitar o mau humor durante o percurso ficando calado. Entre dormir e acordar, eu ouço Juliano e tio Machado conversando.
 - A cidade ta diferente.
- Tá? Como?
- Não sei, diferente.
- Deve ser a chuva – concluiu tio Machado
- Ah é, a chuva. As ruas ficam bonitas.
- Vocês pegaram chuva na estrada?
- Graças a deus não. Se a gente tivesse pegado, certeza que a viagem ia demorar ainda mais.
- E deu pra descansar?
- Mais ou menos. Eu tomo uns dramins e apago, mas não é a mesma coisa que dormir numa cama.
- Não mesmo
- Eu não entendo como meu irmão consegue viajar sem tomar dramin.
- Ah, então é por isso que ele tá assim – disse o meu tio.
- É. Ele também não desce nas paradas pra esticar as canelas.
- Pra esticar o que, Juliano?
Neste momento meu irmão percebeu, mas era tarde.
- As pernas, tio! Esticar as pernas.
Tive que abrir os olhos. Meu tio desviou o olhar da rua e encarou meu irmão. Dois segundos depois, os dois não aguentaram e deram uma gargalhada breve que sacudiu o carro.
- Desculpa, tio. Eu, eu - -
- Tudo bem, tudo bem, não tem problema. Só cuidado com o que fala na frente dos outros.
- Tá certo. Tio, e a tia Mercedes?
- Que que tem ela?
- Como ela tá?
- Estamos todos tristes, Juliano. Mas porque tá perguntando?
- Ué tio, quero saber como estão todos.
- Sim, mas por que perguntou dela? A Gilda e o Wilson é que devem estar mal de verdade. Olha rapaz, eu não desejo isso nem pra meu pior inimigo. Se sua tia Mercedes e eu já estamos arrasados, imagina pra eles. Perder a filhinha...
-...
- Ela tá chorando ha dois dias
- Quem? Tia Gilda?
- Sim, claro. Mas eu tava falando da sua tia Mercedes
- Ah sim...
-...
- Foda.
- É. Foda.
Penso nos pais da minha prima. Não é um pensamento agradável, eu sem dúvidas preferia estar dormindo, mas não consigo evitar. Sou incapaz de calcular o sofrimento deles agora. Isso é algo que está além da minha capacidade de abstração.
- E você, Juliano?
- Eu o que, tio?
- Como é que você tá?
- Sei lá.
Tio Machado se ajeitou na poltrona e esperou que as palavras chegassem com calma à sua cabeça.
- Seus pais também estão muito mal.
- Eu sei.
- Quando eles acolheram sua prima, eu fiquei admirado. Todo mundo na família devia aprender mais com o exemplo de caridade dos seus pais, Juliano.
- Brigado, tio.
Acordado, sigo o resto do caminho coletando memórias e as colocando de volta aos lugares marcados. Pela cidade, vejo vários pontos que não são turísticos, mas me lembram diversos momentos. Olho para o batente da porta de uma casa e vejo a prima nos expulsando por uma temporada, pra um Rehab. Quando passamos pra uma barbearia de bairro, eu me lembro do meu primeiro emprego; eu devia ter uns dezessete anos.  Como a prima ia ficar de vez, minha casa passou a ter mais uma boca pra ser alimentada, então toda ajuda financeira era bem vinda - me tornei um barbeiro. Isso foi pouco antes de Juliano e eu partirmos em viagem por mais de um ano. Agora, de volta à cidade, todas as imagens de antigamente vão penetrando minha cabeça conforme passeamos.  Depois de tanto tempo vendo apenas o horizonte das estradas, os prédios são opressivos– me sinto sufocado, como se o vento não circulasse, mas quando nos afastamos para a periferia, volto a respirar bem.
O cemitério é destoante do resto da cidade. É como um campo de golfe na favela; ou um jardim de inverno oriental no meio do pantanal mato-grossense. É bonito demais pra não estar na televisão, mas sabe como as coisas são com cemitérios. Não importa quão embelezados eles sejam, nunca vão conseguir mais popularidade. Eles são como aquela menina do ensino médio, que mesmo linda não tinha companhia.
Ela não é má. Não te faz mal algum. Como a menina do ensino médio, ela te daria repouso e belezas, mas todos sempre preferem a vida. Eu não. Há muito tempo não descanso direito e sinto inveja da minha prima. Quase ouço a platéia indignada.
A caminhada pelo gramado demora um monte de segundos. O sono é uma dose de morfina na minha corrente sanguínea fazendo de cada instante um retrato, então eu caminho devagar, observando tudo. Ao chegar na capela a primeira pessoa que vejo é Izabela. Ela deve estar arrasada. Na última vez que viu a prima, elas eram irmãs inseparáveis. Agora além de estranhas, estavam para sempre apartadas. Como falar com ela? Como dizer que “sinto muito” para a nova órfã de irmã?
Eu ando pelo gramado querendo driblar estes pensamentos, tentando evitar o inevitável encontro com Izabela, e então no centro da capela vejo minha prima, desta vez cerrada em outro umbral. Ela não está molhada. Vejo muitos parentes em volta e quase ouço música de procissão. Me perco de meu irmão e me meto entre todos que estão ali.
Nem todos os rostos são familiares. Há muitos amigos lá da cidade dela e uns parentes do outro lado da família. Sei onde estão meus pais. Estão do lado do caixão, junto com meus tios, as mariposas mais próximas da chama. Os quatro estão lá, mas também não estão. Seus corpos estão sugados e as mentes em qualquer outro lugar. Sentem-se como estou me sentindo, destacado dessa realidade. Como quando você passa vários dias sem dormir e começa a se sentir intangível, como se não estivesse de verdade ali. Tudo começa a parecer um episódio ruim de novela mexicana, ou um deja-vu de vinte e quatro horas.
Sem me aproximar, olho para as mãos de tia Gilda. Elas se torcem e os olhos vão da prima pro meu tio Wilson. Uma mão dela acalma a outra que quer esganar meu tio. Ela o culpa por tudo. Os olhos dele estão embaçados e não vêem nada. Meus pais estão um de frente para o outro com o caixão entre eles. Eles não trocam olhares.
Olho para a multidão metida na capela. Se todos estivessem de moletom, pareceriam pacientes na sala de espera do bloco hospitalar. Ninguém se lembra o nome do doutor, mas todos sabem quem ele é. Ele é o que cura através do descanso. Sonoterapia. Todos se reúnem na sala de espera pra se despedir de mais uma paciente e ver no mostrador digital que o número de sua senha acabou de ficar mais próximo. Agora é hora da prima, logo, logo seremos todos nós.
A maioria permanece em movimento, indo de grupo ao outro, se abraçando e trocando informações. São como formigas em torno de um pouco de açúcar. Michel e Ivone, as melhores amigas da prima, são o centro de um desses grupos. Ivone conta como conheceu a prima a caminho da faculdade. Segundo ela, as duas pegaram carona com um conhecido em comum e ficaram amigas.
“foi por que ela gostava de Britney Spears” ela diz e o grupo todo ri, mas Ivone completa solene que “foi por muito mais que isso, é claro. Ela era maravilhosa”, e todos os risos se tornam sorrisos melancólicos.  Michel abraça Ivone como eu gostaria de abraçar Ivone. Você nunca imagina que alguém com um nome como esse fosse ser tão gostosa. Ela está vestindo calças e uma blusa escura fechada até o pescoço, e tem um piercing no septo. O nariz está muito vermelho e com coriza, talvez pelo choro. O corpinho dela se encolhe no abraço do amigo que, por sua vez, usa saia e salto-alto. De todas as pessoas na capela, era a mais elegante.
Ali perto vejo João Henrique e seus pais e avós. É como ver elefantes na savana. As mães majestosas formam um círculo poderoso protegendo os mais novos. Mesmo velhas, aquelas elefantas têm poder para proteger e nutrir seus filhotes. Essa é a impressão que tenho ao ver a família Fontes, de deputados e senadores. O absurdo novelesco da vida da prima ficava mais escrachado na presença de João Henrique. Me lembra um drama de perseguição, a história de um stalker cheio  da grana.
Óbvio que o herdeiro da dinastia Fontes tinha que se apaixonar pela retirante do interior: a vida da minha prima era ímã de confusão. Até entendo por que ela se entupia de tóxico. Quando você pára pra pensar, faz todo sentido que ela não aguentasse mais fugir daquele cara insuportável. Até onde todo mundo sabe, a única coisa que os dois tiveram foi um beijo, um único beijo; mas isso foi o suficiente pra ele achar que a vida dela lhe pertencia. Eu não achei justo quando ela desapareceu por duas semanas com aquele desenhista, o George. Mas veja bem, eu não achei justo com os meus pais e com os meus tios; mas com o João Henrique sim. Claro que fugir com o George não foi a melhor ideia, mas foi lindo vê-la escapando por entre os dedos do João.
Só que essa fuga acelerou o processo de auto-destruição da prima, mas isso é culpa apenas dela. Não podemos apontar na cara dos outros e sair fazendo acusações. Tá certo que não ter vindo ao funeral é um ponto negativo pra imagem do George - o faz parecer culpado, de alguma forma. No fundo da minha cabeça imagino que ele deve estar esfregando as narinas na farinha pra aguentar a situação. O ponto positivo é que não temos que presenciar essa cena. Por outro lado, vejo o ultra-chamativo João Henrique Fontes, e também preferiria o desenhista.
Cada grupo conta suas próprias versões da vida da prima. Cada parte uma peça da narrativa que se encaixava ali, sobre um caixão no centro da capela. Talvez essa fosse a última chance de conhecerem a prima por completo, de ouvir todas suas histórias, e por isso as pessoas se misturavam. Os mistérios sobre quem ela era se definiam naquele dia de despedida.
Por um instante achei tudo um exagero, um dramalhão. Mas quem poderia discordar que era exatamente isso que acontecia em todos os enterros? Todas as pessoas ficam se movendo ao redor dela como o vento de um tornado, existindo num turbilhão em volta de um centro imóvel, sereno e morto. Todas aquelas vidas ali girando em torno da prima, agora sem saberem pra onde ir. Pra que serviria meu irmão, se não para ceder-lhe o quarto?  Ou Michel e Ivone, pra que viveriam senão para serem os arquetípicos melhores amigos, como Rosencrantz e Guildenstern pós-modernos? Ou meus pais, para a acolherem? Talvez meu tio Wilson tivesse outra motivação na vida se não tivesse abusado dela, mas toda sua história se condensava neste único e preciso instante. O mesmo acontecia com minha tia. E todos os outros? E eu?
 Todos circulam o caixão com seus pesares, vergonhas, rancores, saudades e desejos. Todos como formigas, em movimento, buscando novos caminhos. Todos com pé na estrada.
Tudo por causa da prima.
Vejo as pessoas tocarem o caixão em seus segundos de despedida. Eles parecem pedir permissão para continuar, pra viver mais um pouquinho. Outros tentam uma última vez absorver sua energia, beber de sua luz. Mesmo eu me sinto uma mariposa, abduzida por esse fogo protagonista que era ela.
Mas sobre todas as coisas, vejo que só eu percebi Juliano, ou aquele impostor vestindo suas roupas e imitando sua voz. Todos o chamam pelo nome ou de querido, e o abraçam como se sentissem saudades. Eles acreditam neste pesadelo, nessa... piada.
Muito estranho. Este não é lugar pra mim. Com minha calça de moletom e outras partes de um figurino inadequado, tomo um dramin e não me despeço quando decido voltar para o ônibus, pra sonhar estando acordado. Não dou tchau para este ator interpretando meu irmão. O tio Machado não está participando do velório, então posso pedir a ele um favor. Quando o encontro, percebo que não é apenas Juliano cujo ator foi trocado no fim da última temporada. Meu tio também está sendo interpretado por outro.
- Quero ir embora – falo pra ele.
Aquela pessoa apenas concorda com a cabeça, abre a porta de trás do carro e nada diz. Sento esticado no banco, sentindo que o cemitério e a capela não eram lugares pra mim. O problema não é a morte, mas o excesso de atenção. Ao menos com os passageiros do ônibus eu poderia permanecer por dias sem ser percebido. Aqui, perto demais do ponto central de todas essas vidas, uma hora ou outra eu seria descoberto. Além do mais, toda essa luz e todo esse sol embotam meus sentidos.
Tenho tempo pra descansar até chegar novamente à rodoviária, então tiro um cochilo. Sonho mais uma vez o sonho da noite anterior, mas dessa vez me lembro. Do meu lado a prima está sentada toda molhada de chuva como da última vez que a vi.
- Estou dormindo, não é?
- Uhum.
- Oi prima.
- Oi Christian.
- Você vai molhar o banco do carro...
- Você tá dormindo, cara.
- Ah é.
- Então, pra onde você tá indo?
- Viajar. Não sei pra onde.
- Não vai se despedir de mim?
- Se você tá aqui, não preciso ficar lá no velório, né? Meu pai e minha mãe estão lá, despedindo de você. Eles estão muito tristes. Os seus também, é claro. Aliás, todos estão. Até o idiota do João Henrique apareceu. A Ivone tava contando histórias sobre como vocês se conheceram, e o Michel... - -
- Eu sei. Sinto muito por eles. Você pode dizer a eles que sinto muito?
- Poderia, mas ia soar meio estranho, ‘cê não acha? Imagina só; eu falando pra todo mundo que num sonho você disse que ia sentir saudades deles... Coisa de maluco.
- Ou de médium.
- Cê sabe que não acredito nisso, prima.
- Então eu sou só fruto da sua imaginação?
- Sei lá. E se for você quem está me imaginando? Que que eu sou pra você?
- Ué, meu primo. Que entendeu quando eu precisei ficar sozinha pra me tratar.
- Quem entendeu foi o Juliano. Eu apenas obedeci.
- Acho que é tarde demais pra pedir desculpas, né?
- Acho que sim, mas não tem problema. Eu faria o mesmo de novo. Sabe como é, ‘família em primeiro lugar’.
Ela sorriu.
- Vou sentir saudades.
- Eu também, prima.
- Sabe, eu tenho inveja de você, Chris.
- Por que?
- Você sempre soube desaparecer. Mesmo agora todo mundo está dando conta da minha existência, e eu nem existo mais.
- Existe.
- Christian, estou morta.
- Na memória não. A vida de todo mundo sempre dependeu de você. Não sei como, prima, mas você sempre foi o motivo de tudo que acontece na vida de todos nós.
- Sério?
- Acho que sim.
- Desculpa por isso.
- Tudo bem.
- Mas e agora, então? Pra onde você vai?
- Já disse, não sei. Acho que vou acordar.
- Ah, Chris, mais uma coisa. Não sou eu que sou fruto da sua imaginação, nem o inverso. Acho que todos nós somos na verdade imaginação de outra pessoa.
- Tipo o roteirista de um seriado?
- Acho que sim.
- Se for verdade, então ele tem um péssimo senso de humor.
Quando acordo, estou de volta à rodoviária. Desço do carro ensopado de suor e pra lá de exausto. Pego as malas, levo até o ônibus e quando entro, vejo que há alguém no meu lugar marcado. Não demora muito até que eu consiga tirar aquele sem-vergonha do meu lugar. Ainda é dia, então puxo a cortininha, reclamo do calor e fico esperando pelo movimento e pelo vento da estrada. Estou com saudade das madrugadas. Na placa leio “cem quilômetros de São José do Fim do Mundo”. Alguém atrás de mim reclama que o pacote de biscoitos que comprei faz barulho demais, mas isso não tira a minha serenidade. Reclino a minha poltrona pra dar uma lição a este babaca, diminuindo o espaço dele. Sou muito inteligente.
Penso mais uma vez na minha família, e como todas as narrativas então ligadas. Como a minha prima, sei que tenho algo a viver com todos esses passageiros, nem que seja só por um ou dois dias. Com a partida do motor, eu quase ouço a música do fim, mas o embalo do ônibus já está me levando.

Comentários

  1. Olá, achei muito interessante e fiquei bastante instigada! Queria saber mais da vida dessa moça; realmente o modo como contou tudo deixou espaço para algum mistério e considero isso muito bom. Por outro lado, acho que não ficou bem explicado o facto do porquê o protagonista ver outras pessoas no lugar dos familiares e pessoalmente eu não colocaria tantas abreviaturas no texto (tá; pra), somente nos diálogos. Alguns "há"´s ficaram também por acentuar. Parabéns pelo texto e continue com o bom trabalho XD

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    1. Olá Alexandra. Não sou muito adepto de explicar o que escrevi, mas vamos lá. Você já assistiu alguma série ou novela em que um dos personagens Coadjuvantes passa a ser interpretado por outro ator/atriz?

      Poisé.
      =D

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