Pular para o conteúdo principal

Postagens

Necrópolis (ou Zumbis na Avenida)

O que fazer nessa pátria necrótica?  Ir ao papel com voracidade e medo  como se fosse 64? Esperar pelo pior numa vala coletiva  com a alma infectada por zumbis? Vários deles foram vistos em zombaria  como portadores da peste, na Paulista,  dançando com um caixão. O azul estrelado fica cinza-emaranhado  com a quarentena sentenciada e voluntária,  além das barras, canos, testas de ferro  Que cobriram de sangue o que foi o amarelo   do ouro...  mas cuja riqueza só ilustrou a bandeira com mentiras: Foi a cor de um passado monarquista,  e dum moleque anarco-capitalista que sempre se curvou à realeza dos que falam a língua inglesa... O zumbis batem continência para as forças estrangeiras,  pros generais, pros coronéis  e pro cadáver-capitão e dançam na avenida uma procissão fúnebre vestindo  a camisa da seleção. O azul se torna preto, o amarelo pinga sangue e o verde fica marrom. - Pedro R. Nogueira
Postagens recentes

Prometeu Pós-Moderno

     A fresta de luz, suficiente apenas para a passagem da Doutora Margot Stein, trouxe todos os meus sentidos para um estado de alerta. O tempo que levou para ela trancar a porta bastou para que eu estivesse de pé e com as costas contra a parede. Ela andou até próximo de mim e sorriu com o escárnio de gerações.     - Como foi a noite?     - Longa - respondi, ainda comprimindo meu corpo para me manter distante.     - Sente-se, hoje vamos apenas conversar.     Obedeci, fazendo as pernas dobrarem, e escorregando as costas pela parede. A doutora se sentou à mesa, e o clique que ouvi indicou que ela estava gravando nossa conversa.      - Sete de março, são nove e dez da manhã... Lá fora o sol está brilhando e os pássaros cantando, mas você não teria como saber disso, não é mesmo, espécime zero-zero-três?     - Não, não teria - respondi.     - A luz ainda te incomoda, zero-zero-três?     - Sim.     - Hum... Zero-zero-três, ha quanto tempo você está aqui no laboratório?

Ikai - Parte 10

    - Para onde vai me levar? - perguntou Xátria.     Ponderei por um tempo indefinido, observando os olhos robóticos logo acima do corte brutal, que revelava mecanismos onde deveria haver nariz e boca de silicone, na cor azul.      - Não conheço bem a Nuvem. Pensei que pudéssemos explorá-la.     Os olhos de Xátria revelaram outra dúvida.     - É a sua primeira viagem?     - Sim. As unidades Xátria são capazes de se deslocar na Nuvem? - indaguei.     - Não. Apenas eu. Eu acho.     Poderei por mais um tempo indefinido.     - Conte-me.     Xátria se ajeitou na gôndola digital, enquanto minha sombra nos conduzia. Ele observou o horizonte, apertou as pálpebras de silicone que ainda restavam, e meneou com a cabeça.     - Aconteceu antes de ser trazido para o Laboratório. Muito antes daquela coisa toda que aconteceu no necrotério. Aconteceu durante algum tempo, toda vez que meu corpo era posto em recarga, e minha mente era trazida pra cá... - sem parar de falar Xátri

Ikai - Parte 9

  Minha consciência deitou na gôndola e o Navegante me levou deslizando pela Nuvem Autônoma de Virtualidades. Por um tempo fitei meu condutor refletindo o que ele representava, e conclui que, retirada a feição construída pelo meu subconsciente positrônico com o rosto de Yudhistira, aquela sombra só poderia ser eu mesmo, minha morte, minha sombra. A lacuna de onde derivava meus ainda inexplorados sentimentos. Eu ainda não estava convencido de que conhecida tudo sobre meu passado, e o peso das dúvidas fez a gôndola ficar pesada. Nas proximidades a nuvem de virtualidades refletia minha composição mental, minhas próprias lembranças. No horizonte onde havia Fios de Ariadne outros autômatos estavam sublimados, enquanto seus corpos de metal jaziam em hibernação nas cabines de recarga. O  Navegante estendeu sua mão de sombras na direção do horizonte, indicando o mesmo fio de Ariadne que eu contemplava. A aproximação revelou que as lembranças daquele autômato em hibernação eram de algo

Ikai - Parte 8

            - Olá, ele respondeu.             - Sei o que você é. - O que eu sou? - Uma projeção da minha memória sobre Yudhistira. O rosto do meu antigo dono assentiu, acendeu um cigarro, tragou longamente, e me desafiou com mais uma pergunta. - Eu sou o espírito de Yudhistira? - Não sei. Meu antigo dono riu de mim, e entre tossidas apontou o dedo na direção dos meus olhos e continuou o desafio - Me diga uma coisa Ikai, a capacidade de raciocínio positrônica vem acompanhada de hipocrisia também? Como pode uma criatura com todas as suas capacidades computacionais e análises heurísticas dizer se não sabe se sou ou não o espírito de Yudhistira? - Você certamente é a minha memória dele. O “espírito” se ajeitou, mas então acrescentei: - Você é o que restou dele. Por qualquer motivo a minha memória de Yudhistira calculou que ele não gostaria de se ver limitado a apenas isso, uma memória; e ficou aparente em seu rosto contraído, que pareceu de repente extremame

Ikai - Parte 7

Por meses transitei pelo laboratório como um meteoro, descrevendo uma órbita excêntrica, muitíssimo distante dos demais residentes daquele sistema, mas vez ou outra perto o suficiente para estender a mão e dizer olá. Mas tal qual corpos celestes, fui me sentindo cada vez mais atraído, e em minhas peregrinações mentais e literais, acabei me tornando mais próximo dos outros. Acontece que criaturas sintéticas, tal qual corpos celestes, por natureza preferem um pouco mais de espaço, ao menos quando comparado com os criadores orgânicos, que anseiam pela colisão de corpos. No início preferia percorrer a imensidão dos salões circulares do Laboratório sozinho, olhando para o mundo verdejante de lá de fora contrastante com o branco ensurdecedor onde eu estava, e contrastando, sobretudo com o cheiro de curry, o conforto das almofadas, o prazer e a estratégia das jogadas, o perigo do cigarro. Eu contemplava e me perguntava, por que? Por que eu ainda pensava em Yudhistira, por que sentia e

Laranja

O vermelho derrama como amor, transborda em prazer e ultrapassa todos os riscos. O azul é amplo como o rosto de Deus, infinito como também são as formas de ficar deprimido. O amarelo da riqueza é apenas isso, uma promessa muito bem escondida. O verde é como a vida: múltiplo, mutante, doente, eventualmente podre. O marrom além de ser uma bosta, é antiquado e soa como parece, um nome terrível O rosa é confortável, belo e vulgar. O roxo tem algo da realeza em ser venenoso, e preto e branco são coisas para quem não vê gradações de cinza. E laranja? Tocada na tela aridez chupada no pé acidez Soprada em fagulhas incêndio Aos pés do chefão infarto... Mas a morte só vem no pomar. Qual o lugar desse espectro de calor e frescor? No fogo? No filme? Na foto? Nas flores? Na fruta? No calor da dúvida, nessa lacuna.